Sistema Online de Apoio a Congressos do CBCE, V Seminário Nacional Corpo e Cultura CBCE I Seminário Internacional Corpo e Cultura CBCE IV Sem. Nacional e Intern. HCEL

Tamanho da fonte: 
“Indulgence in/ fighting against” Ações corporais de uma dança étnica de matrizes africano-brasileiras
Suzana Maria Coelho Martins

Última alteração: 2018-08-27

Resumo


Palavras-chave: Ações corporais; etnia; orixá
Palavras introdutórias/ justificativa/ base teórica:
Ao longo da minha vida profissional e acadêmica tenho desenvolvido projetos de pesquisa que são vinculados ao estudo do corpo em movimento com ênfase nas culturas de matrizes estéticas africano-brasileiras. Na busca de compreender como esse corpo se expressa nas manifestações populares, como o samba de roda, os afoxés, os maracaturs e a dança dos orixás do candomblé, busquei os estudos da dança étnica, da antropologia da dança e a Etnocenologia. De uma forma geral, estes projetos de pesquisa foram desenvolvidos também através da prática, experimentando, observando e praticando os movimentos, gestos e ações no meu próprio corpo. Utilizei ainda uma combinação de técnicas e métodos da pesquisa qualitativa, uma vez que há carência de metodologias no campo da dança étnica. Vale ressaltar que a antropologia da dança, como embasamento teórico ofereceu-me a possibilidade de compreender os contextos sociais, culturais e/ ou religiosos que envolvem estas manifestações, como, por exemplo, a compreensão e interpretação das sutilezas das ações e atitudes do grupo social escolhido, as quais não estão descritas nos livros. Outro dado fundamental da pesquisa está na apetência e competência da pesquisadora sobre conteúdos específicos da dança, o que muitas vezes são negligenciados pelos antropólogos ao interpretar os fatos por não possuírem esta formação acadêmica. Deste modo, devo salientar que os conteúdos etnográficos proporcionaram-me a leitura e compreensão desse corpo em movimento. A partir dos estudos teóricos de Judith Lynne Hanna (1984) e o seu guia The Ethnic Dance Research Guide como a primeira fonte teórica me proporcionou o entendimento das ações, movimentos e gestos que são expressões ordinárias desses grupos populares. Assim, ela aponta que
[...] a dança é um comportamento humano composta de padrões não-verbais de movimentos e gestos, propositadamente, ritmicamente e culturalmente elaborados na sociedade na qual ela está envolvida: são atividades motoras ordinárias. Inspirada por estímulos selecionados do ambiente social e do interno psicológico das pessoas, a dança traduz essas atividades em expressão significativa através da manipulação artística dos movimentos. Essas expressões em que a dança é criada por valores, atitudes e crenças das pessoas que a atribuem como “anfitriã” da sociedade. Isso vai depender dos seus sentimentos, pensamentos e padrões de ação. Assim, os elementos do espaço, do ritmo, da dinâmica e suas combinações, e consequentes forma e estilo, não estão à parte do processo comportamental humano, o qual eles produzem. Essa é a razão pela qual a dança pode ser vista impressionantemente, mas também pode ser assunto subjetivo para análises objetivas, observações, sistemáticas e relatos que são outras formas de comportamento humano (pág. 94).
Sob a ótica da Etnocenologia foi possível averiguar as “Práticas e Comportamentos Humanos Espetaculares Organizados” (PCHEO). Os PCHEO, como são denominados pela Etnocenologia, propõem discutir questões práticas e teóricas através do processo metodológico, que envolve a tríade “sujeito-trajeto-objeto”. Outro aspecto considerado como procedimento metodológico da Etnocenologia está imersão do artista pesquisador na cena, como sujeito da própria pesquisa. Embora a Etnocenologia seja apresentada como uma das vertentes da etnociências das artes e formas de espetáculos, estas transcendem fronteiras da investigação, uma vez que se caracterizam como “polifônicas” e “polissêmicas” (Brígida, Miguel Santa, pág. 14, 2016). Com relação à observação e interpretação do corpo propriamente dito, utilizei os estudos do pioneiro da dança moderna Rudolf Von Laban, que criou um sistema de análise do movimento e em colaboração com o industrial F. C. Lawrence apresentam um estudo sobre o “impulso” (effort) do movimento, como ponto comum a todas as atividades motoras do ser humano, no livro intitulado Effort: economy in Body Movment, (1974). Este estudo me auxiliou na análise de duas ações contrastantes, que envolvem a dança de um determinado orixá: Yemanjá Ogunté – um orixá que na sua dança e música demonstra certa dinâmica com qualidades diferentes e opostas por ser um orixá que carrega no seu arquétipo duas características, ou seja, o seu arquétipo carrega dois aspectos diferentes associados à natureza: o elemento água como “a mãe das águas salgadas”, sendo Yemanjá e o elemento terra, como Ogum, pois ela tem um relacionamento hierárquico com este orixá.
Observei que as ações “Indulgence in” (entregando-se) e “fighting against” (lutando contra), nomeadas por Laban e Lawrence compõem essa dinâmica da dança étnica de Yemanjá Ogunté. Vale ressaltar que este orixá foi estudado e pesquisado por mim, durante o meu curso de doutorado, desenvolvido no departamento de dança da Temple University, Estado Unidos, o que resultou no meu livro “A Dança de Yemanjá Ogunté sob a perspectiva estética do corpo” (2008).
Toda a coleta dos dados etnográficos foi realizada na pesquisa de campo na casa de candomblé Ilê Axé Jagun ou casa de mãe Nini, localizada no bairro de Alto de Coutos, na cidade de Salvador, Bahia. Durante a evolução da dança, o corpo de Yemanjá Ogunté está mais ou menos energizado e a coluna vertebral ereta, mas, sem, contudo, estar carregada de um esforço extra, ou seja, sem rigidez. Esse orixá altera o impulso e a projeção do movimento de forma drástica, ora Yemanjá Ogunté está associada às águas calmas do mar, o que caracteriza a ação “indulgence in”, entregando-se à calmaria das águas do mar, ora ela está lutando contra o inimigo (“fighting against”) associado ao enérgico Ogum. Em síntese, o corpo de quem dança o orixá Yemanjá Ogunté além de assimilar os fundamentos e as características do orixá, aprende a dançar usando essas duas ações de controle do movimento. Através do processo de repetição e observação diante dos mais velhos, o corpo coordena, conscientiza-se de forma holística, corporificando o ritmo e os movimentos e gestos, passando por um processo intenso e extenso de aprendizagem. Enfim, observo que o corpo que aprende a dançar o orixá Yemanjá Ogunté articula de forma extraordinária e espetacularmente diferente de outras formas de dança e música, devido à herança das culturas negras que trouxeram para o Brasil, principalmente, para a região Nordeste, seus costumes, suas crenças, suas danças, suas músicas, seus instrumentos, sua religião e outras.
Concluindo, esta comunicação oral pretende expor esse fragmento coreográfico destas ações “indulgence in” (entregando-se) e “fighting against” (lutando contra) do corpo, embasadas nos fundamentos que estruturam a dança de Yemanjá Ogunté no seu contexto étnico e estético. Assim, estarei viabilizando estas reflexões e observações na intenção de divulgar os resultados do meu projeto de pesquisa realizado durante o curso de doutorado, como dançarina profissional e pesquisadora em dança.
Referências
Anais do I Encontro Nacional de Etnocenologia – O estado da Arte-12 a 15 de abril de 2016, Escola de Teatro/ UFBA.

Brígida, Miguel Santa. “Quem sabe é quem faz, vive e sente: saber inCORPORado, Experiência encarnada e a sabedoria dos praticantes na construção epistêmica da Etnocenologia”. In: Anais do I Encontro Nacional de Etnocenologia – O estado da Arte-12 a 15 de abril de 2016, Escola de Teatro/ UFBA.

Hanna, L. Judith. Anthropology and the dance. CORD–Research Annual VI. Tamara Comstock (ed). Tucson, The University of Arizona, 1970.
Le Breton, David. Antropologia del cuerpo y modernidade. Buenos Aires: Nueva Visión 1995.
Martins, Suzana. A Study of the dance of Yemanjá in the ritual ceremonies of the candomblé of Bahia. Tese de doutorado. Filadélfia, Pensilvânia: The Dance Department of Temple University, 1995.
------------------------. A Dança de Yemanjá Ogunté sob a perspectiva estética do corpo. Salvador: EGABA, 2008.

Texto completo: PDF